terça-feira, 24 de maio de 2016

Memória Traidora

           Tentei te convencer com minha expressão de serena despreocupação, dei um sorriso resignado que meus músculos esforçados lutaram em levantar. Nem precisa ser Paul Ekman pra decifrar nos meus olhos óbvios o caroço de abacate ainda entalado na garganta que falta coragem para arrancar. Esse esforço que mantem o gelo digno, a indiferença artificial, os movimentos fingidos soca, estapeia e esmaga a cara do medo da exposição, que mesmo um pouco amarrotado e esfarrapado sempre supera. E nesse confronto enfio a mão na minha boca entupida e tento em vão desobstruir a laringe, o que sai é esse texto que falta técnica e transborda sentimento. Daqui, vejo os amores escorrendo nos dedos, vejo o mesmo maldito medo que me assombra e contamina os beijos mornos, as transas mecânicas, a falta da língua, a falta do toque, do calor, o orgasmo falso, a apatia do gozo, a frouxidão dos braços, e a despedida modorra pela manhã depois do café que desce frio. Mesmo nós, e quem diria? Nós. Afogamos no marasmo sufocante, tropeçamos no automatismo maquinal do acorda e dorme de todo dia e caímos de cara na monotonia. 
            Eu estendo o mapa múndi, imagino todo os lugares que poderíamos ter ido mas não fomos, poderíamos agora estar passando um frio na Suécia, bebendo uma bebida barata e contando os trocados para a próxima viagem. Você sentado com aquela blusa verde impregnada do seu cheiro que mistura com o cheiro do café que vem da mesa de trás, daquela mesa das pessoas que não param de nos olhar porque você ri alto sem parar da minha busca desajeitada que mais uma vez acontece. Eu tento achar onde está a carteira, tiro tudo para fora da bolsa, vou colocando em cima da mesa, óculos, chaves, cadernos, canetas, panfletos, dicionário sueco, agasalho, um livro, isqueiro, cigarros, uma garrafa d'água, quase derrubo o seu copo. A mesa está coberta de coisas enquanto você ri despreocupadamente apostando certeiro que o tempo para que eu encontre o objeto perdido será de sua ida e volta ao banheiro, diz que me conhece e repete mais uma vez que eu preciso dar um jeito nessa bolsa. Você volta do banheiro e vem andando devagar e mesmo de longe, avista do corredor que eu estou exibindo todos os meus dentes e fazendo graça e malabarismos com a carteira, risadas simultâneas, abraço, beijo. A mesa ao lado agora olha sem disfarce, eles não conseguem parar de olhar, eles olham com o mesmo olhar de que olham um filhote de gatinho miando, todos querem uma bicada da felicidade que respinga nas mesas daquele café. Os suecos não entendem ao certo nada do que dizemos, mas eles sabem que querem sorver até ficarem totalmente embriagados daquilo, eles piscam os desejosos olhos com sede e sorriem, nós olhamos para eles, e antes de nos dirigirmos para pagar no caixa, fitamos os sorridentes das mesas e devolvemos aquele sorriso. Para esse diálogo eu não necessitaria de usar o meu dicionário. 
           Poderíamos estar em uma tarde ensolarada de verão deitados numa pedra ao lado de uma cachoeira, o barulho da água preenchendo os silêncios confortáveis que aparecem, os raios de sol acariciando nossos corpos jogados ainda molhados, dois girassóis de carne nua cintilante se movendo de acordo com o movimento do sol, tudo foi feito pelo sol. Seus lábios finos, os ossos largos do seu rosto, os cabelos dourados, arrepiados e loucos balançam contra o vento, as mãos molhadas de água doce deslizam pelo meu corpo e esse sorriso, esse lisérgico viciante sorriso que já vi mais de mil vezes e toda vez traz um êxtase novo. Nesse instante crianças não choram, não existe a guerra tampouco a miséria. Nesse instante Ying e Yang se fundem e acaba a dualidade do universo. Os mutantes compuseram desanuviar só para nós, só para esse imaginário momento, quem sabe se é hoje o dia de desanuviar? As viagens realizadas e sonhadas se misturam e exercem o mesmo poder de encantamento. 
           Não houve uma vez sequer, que dentro da minha cidade natal não desejei estar num filme de Kaufman e apagar as insistentes memórias ou quem sabe entrar em alguma realidade paralela. Parece que o amor só é acessível quando alguém fecha os olhos. Talvez seja isso, essa é a solução; eu deveria queimar tudo, talvez seja culpa daquele maldito diário de uma pré-adolescente de 11 anos, que nos seus alvoroçados garranchos descrevia um garoto terno que a levava para tomar sorvete numa tarde ensolarada de um dia qualquer. O garoto cresceu, menina, não cabe na vida real romances de cinema, a demanda da atualidade é a autonomia do eu, ninguém é de ninguém, pega mas não se apega. Não, o esforço parece inútil, as memórias nutrem a saudade, nessa realidade paralela na qual você e suas convicções, que você adora falar, estão próximos de mim, bailando entre realidade e ficção. Haverá um dia, em que a única coisa que nos ligará será essa cidade e as memórias, tem no caroço do abacate a agonia que esse dia chegue. Por aqui, muita coisa mudou sim, mas eu ainda não sei beber em bebedouros, ainda mastigo água, ainda tenho medo de baleias, ainda não sei sambar mas adoro fingir, ainda me rabisco toda quando tenho uma caneta em mãos, ainda fico nervosa com os atendentes de Fast Food apressados e ainda gosto de você, isso é a pior das coisas que permanece em mim.
  Desde que você partiu,a cidade zombou de mim com todos seus vidros refletindo, incessantemente, seu rosto, os travesseiros fabricaram, repetidamente, o mesmo sonho, o seu chegar. (Raphaela.Viana.) 

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